O que lhe dói mesmo é a alma

Maria do Socorro  nasceu em um berço muito humilde, no interior do Ceará. Passou fome, passou sede, viveu de tudo e desde cedo o desamor esteve presente no seu peito. Seu pai alcoólatra, sua mãe franzina, sua terra sem gado, sem luxo, não tinha nem mato. Sentia dores no peito na adolescência, precisou operar o coração. Ao melhorar ela se arriscou, foi para a capital ser babá, empregada e humilhada. Encontrou um homem, Geraldo era bonito, meigo, mulherengo e marinheiro. Teve um filho, casou com o homem, mas ele não casou com ela. Teve uma filha.

Era um dia quente como todos os dias em Fortaleza, era um dia triste, como todos os dias daquela mulher. As fofocas, as intrigas e as mentiras. A vizinha fulana de tal tinha acabado de comprar uma nova geladeira, só poderia ter um amante, ou então seu filho estava envolvido no tráfico de drogas, atividade mais que comum naquela comunidade.

Roberta do Socorro filha de Maria precisava de uma toalha, mas Maria não poderia ir lá buscar, pois ainda não havia descoberto o que estava acontecendo de errado (de certo é que não poderia ser) na vida da vizinha – vai filho, sobe lá na laje e pega a toalha pra sua irmã – teria dito Socorro. O garoto Tiago sempre obediente, sempre sorridente, e sempre brincalhão foi, no auge dos seus quatro aninhos, junto dos seus dois amigos inseparáveis.

Diz que quando ele pegou a toalha o filho do seu Zé decretou que quem chegasse por último seria a mulher do padre. Ele correu, o filho do seu Zé correu e o outro garoto filho duma mãe, mas sem nenhum pai correu também. Na beira da laje estava a escada, no final da escada era o ponto de chegada, o filho do seu Zé que largara na frente já estava na escada, e o outro, filho duma mãe temendo a derrota bateu no ombro do Tiago, que tropeçou na toalha e foi nesse momento que parece que o chão recuou, dizem os vizinhos que foi coisa do tinhoso. E lá foi Tiago, sem tempo para chamar por Socorro, chegou primeiro no asfalto, mas foi por um atalho, não seria a mulher do padre, nem a mulher de mais ninguém, ele descansaria a cabeça naquela pedra, fecharia os olhinhos para nunca mais abrir, nunca mais sorrir, nunca mais brincar. Dizem os vizinhos que ele agonizou, mas em silêncio, pois sua mãe sempre mandou ele calar a boca, essa foi a última vez que ele obedeceu.

Maldita seja Roberta que precisou de uma toalha! Teria dito Maria para si mesma, colando as duas mãos sobre a boca da consciência espantada pelo seu pensamento.

Maria do Socorro no fundo se culpava por ter mandado o menino ir buscar a toalha, mas também culpava Roberta, que tinha dois anos de idade e fez xixi na calça e precisou de uma toalha. Maria se culpava por culpar Roberta. Socorro precisava de carinho e de atenção, mas quem lhe daria isso se o homem com quem tinha casado não era casado com ela? Ela chegou a pensar que ele teria outra família, mas logo descartou essa dor, pois pela quantidade diferente de cheiros, cabelos e batons, ela percebeu que ele era um homem de muitas mulheres, mas de família nenhuma.

Maria engravidou novamente, ela teria pensado que essa criança faria aquele homem a amar. A criança nasceu, e ainda no hospital morreu, dizem os vizinhos que o mesmo demônio que havia recuado o chão para Tiago demorar um pouco mais caindo recuou o ar e fez o bebê não poder respirar. Maria precisava de socorro, e em uma tentativa desesperada para sanar a dor fez de tudo para engravidar novamente,  conseguiu. Agora não teria mais jeito, o homem que ela casou mas que não era casado com ela teria que lhe dar amor.

Mas segundo os vizinhos a alma dos dois filhos perdidos ficaram presas dentro de Maria, alojadas em alguma parte do coração. As almas chutaram o bebê pra fora, Maria do Socorro pariu um filho de apenas sete meses, o seu nome seria Elias das Almas do Socorro. O homem que nunca casou com Maria, mas que ela era casada a abandonou para finalmente casar com uma mulher, a mulher da sua vida, e sumir para o outro lado do Brasil, Curitiba. Terra distante, terra de trabalhador. O Nordeste é casado com o Sul, mas o Sul não é casado com o Nordeste, dizem os vizinhos que o Sul quer fazer igual o homem que nunca foi casado com Maria.

Maria do Socorro sofreu, não que em algum momento da sua vida ela tenha sido feliz, mas nesse instante ela sofreu mais do que jamais imaginou que conseguiria sofrer. A alma dos seus dois filhos atormentava seu coração, a alma do seu pai já falecido atormentava suas lembranças, a saudade do homem que ela foi casada atormentava seu futuro. Mas ela tinha dois filhos para cuidar, Roberta que foi culpada pela morte de Tiago e que era culpada pela culpa que Maria sentia ao culpa-la e Elias que mais parecia um resto de parição.

Dizem os vizinhos que Elias cresceu nas vielas nu, brincando com os ratos. É como aquela história do garoto que cresceu na floresta e foi criado por lobos, por isso se sentia lobo. Elias foi criado com os ratos e se sentia um, parecia com um. Dizem os vizinhos que um dos vizinhos teria ligado para o homem que nunca foi casado com Maria e teria dito que se ele não cuidasse das crianças elas morreriam, pois Maria só tinha tempo de cuidar das suas dores.

Foi num ato desesperado para salvar a vida dos filhos que o homem os levou a força para morar com ele. Agora Maria não tinha mais chão, nem pai, nem mãe (que também colhia suas dores dia após dia no interior do Ceará) nem filhos, nem marido, nem amor. Sua alma corroía a sua história, seus medos estavam enraizados nas amarguras do passado. Maria clamava dia após dia para ser amada. Dizem os vizinhos que era possível ouvir a sete quarteirões dali sua alma clamar por um abraço, um carinho, um cuidado de quem quer que fosse. Assim como os corpos físicos dos seus filhos mortos apodrecia a sete palmos abaixo da terra a sua alma apodrecia a sete quarteirões abaixo do inferno.

Um dia, atendendo aos pedidos desesperados daquela mulher que agonizava em suas mazelas, teria saído de algum canto um homem, que veio com pose de herói mas com a aparência de bandido socorrer aquela pobre mulher. Maria casou com aquele que os vizinhos diziam ser enviado de Satã, mas ele também não casou com ela.

Socorro ainda sofria, a alma dos filhos no coração e a dor de ter os outros dois tão longe fez  Maria gritar tão alto, mas tão alto, que o som atravessou com o vento do Nordeste ao Sul do país, e um dia em que o primeiro homem que não foi casado com Maria estava sentado embaixo de uma árvore sentindo a brisa fria bater em seu rosto, sentiu a pancada forte do grito de Maria que veio com os ventos. A pancada foi tão forte, mas tão forte que o matou e a sua alma para se vingar de Maria levou também os outros dois filhos. Ao saber da notícia Maria não aguentou mais, seu coração sufocou as almas aprisionadas nele, matando-as até na morte e o seu corpo ficou necrosado.

O segundo homem que Maria casou, mas que nunca foi casado com ela a abandonou, roubando tudo que ela tinha em casa. Maria, com toda a dor do mundo odiou aquele homem a tal ponto de abrir uma fenda no inferno e o devolver para lá. Mas o homem roubou tanto de Maria que junto com todos os seus móveis levou também uma parte significativa da sua alma. Maria sofre hoje com necroses, cânceres e depressão, mas no fundo, bem no fundo o que lhe dói mesmo é a alma que está pela metade

3 comentários em “O que lhe dói mesmo é a alma

Deixe um comentário