Aborto, eutanásia e testemunhas de Jeová x Direito à vida

Se todos têm direito à vida, porque ainda existe uma discussão sobre aborto? E a eutanásia? Pode? O artigo 5.º da Constituição estabelece que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”.
Hoje a gente vai se concentrar no direito à vida. Para começar a nossa conversa, é importante destacar o princípio que deve nortear toda interpretação sobre direitos humanos: a dignidade da pessoa humana. Então, quando a gente está falando de direito à vida, estamos falando também sobre o direito da pessoa viver com dignidade.
No Brasil, o conceito de respeito à vida está muito atrelado a uma concepção religiosa. Mas é importante entender a Constituição como uma carta política: ela é uma baliza de até onde o estado pode ir e a partir de onde o Estado não pode intervir. Por isso, a interpretação dos direitos fundamentais não pode ocorrer em desfavor do cidadão.
Então, a gente não pode analisar o direito à vida apenas do ponto de vista biológico. É preciso levar em conta o direito a uma vida digna em que se possa desfrutar das liberdades previstas na Constituição.
Vamos imaginar o seguinte caso: um paciente que é testemunha de jeová está em estado grave no hospital e se recusa a receber uma transfusão de sangue que pode salvar a sua vida. Esse paciente é adulto e está consciente. O médico pode ignorar a vontade do paciente, alegando o direito fundamental à vida?
O Conselho Regional de Medicina de Pernambuco precisou analisar esse caso e decidiu que não. Para o CRM, salvar uma vida a qualquer custo não atende ao princípio do direito à vida previsto na Constituição. Isso porque esse direito à vida não deve ser interpretado apenas no sentido biológico, mas no sentido de propiciar uma vida digna, que considera o ser humano como um todo, com suas crenças, valores e dignidade moral.
O mesmo raciocínio pode ser utilizado quando estamos tratando da eutanásia. Vamos supor que um paciente esteja em estado vegetativo, vivendo apenas com a ajuda de aparelhos, e não há perspectiva de melhora. A família pode decidir desligar os aparelhos?
Hoje essa prática é proibida no Brasil e se alguém faz isso pode ser acusado de homicídio.
Mas se a gente levar em consideração o direito à uma vida digna, a eutanásia deve mesmo ser proibida? Nesse caso, o paciente não pode usufruir de um nível de vida adequado, como educação, cultura, lazer e nem mesmo as suas funções vitais são autônomas.
Agora, o assunto que talvez seja o mais polêmico de todos: o aborto. A gente já disse que no Brasil o conceito de respeito à vida está muito atrelado a uma concepção religiosa. Talvez nenhum tema seja mais elucidativo disso do que o aborto.
Desde a década de 60 se discute a descriminalização do aborto, mas esse tema sempre acaba sendo barrado no Congresso pela bancada religiosa.
O Código Penal tem duas hipóteses para um aborto legal: o aborto necessário, quando é para salvar a vida da mulher que está em risco; e o aborto sentimental ou humanitário, legalizado para vitimas de estupro.
Um exemplo recente da mistura entre religião e política quando falamos sobre aborto foi um caso ocorrido em agosto de 2020 quando uma criança que era abusada desde os 6 anos de idade pelo tio engravidou aos 10 anos e precisou fazer um aborto, que estava enquadrado nas duas possibilidades do código penal: a gravidez oferecia risco à vida da criança e era afruto de um estupro.
Ainda assim, grupos religiosos se organizaram e foram para a frente do hospital em que o procedimento seria realizado, hostilizando a equipe médica e chegando até a chamar a criança de assassina.
Importante ressaltar também que pouco depois do ocorrido começaram a aparecer a ligação de políticos religiosos com o caso, chegando-se a citar o envolvimento da ministra Damares, à frente do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos do governo Jair Bolsonaro.
O médico que realizou o procedimento na criança já recebeu ordem de excomunhão pela igreja católica duas vezes, sendo a última num caso similar, ele realizou, em 2008, o aborto numa garota de 9 anos de idade que havia sido estuprada e estava grávida de gêmeos.
O principal argumento contra o aborto é o direito à vida do feto. A concepção religiosa considera que a vida começa a partir da concepção e, por isso, é contra o aborto.
Mas a ciência considera que um feto só tem vida depois da formação do cérebro e o início do batimento cardíaco, que começam a partir da 12º semana de gestação.
Aqui é importante destacar: o Estado é laico. Ou seja, não deve se guiar por princípios religiosos. Você pode ser contra o aborto por questões religiosas, mas o Estado não pode impor essa concepção a todos. Até porque a Constituição também garante a liberdade religiosa como direito fundamental. Se eu não tenho a mesma crença que você, é justo que eu tenha que viver sob regras da sua religião, impostas pelo Estado?
A Organização Mundial de Saúde discute o aborto como um problema social. Cerca de 600 mil mulheres morrem por ano no mundo ao fazer abortos clandestinos. Nesse caso, o direito à vida das mulheres está sendo violado, assim como o seu direito à autonomia.